quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Dentro do Velho Caderno

(...) Não importava se a tempestade escurecera o dia porque os olhos daqueles moleques eram como refletores iluminando a esquina (...)



Dentro do Velho Caderno

Amigos!

A seguir, mais textos do velho caderno que estavam perdidas nos arquivos do blog: agora refeitas com os recortes de imagem montadas com Gimp.

City Tour

(1999)

"Proibida a prática de surf - No Surfing"

É curioso perceber que em meio a tanta beleza que premiou a praia de Boa Viagem - Recife PE - estas frases conseguem se destacar. Elas estão pintadas em algumas placas fincadas na areia, e não nos deixam esquecer da presença de tubarões nas mornas águas daquele litoral.

- Até Hoje, eles só pegaram surfistas. É que os surfistas vão além dos arrecifes - tenta tranquilizar o taxista.

Expandindo a visão, percebemos do lado oposto, diversos novos prédios surgindo ao longo da Av. Boa Viagem.

Voltamos o foco em direção ao mar que transforma a luz de um sol intenso em intenso verde-azul, a nos convidar, no zunido de uma brisa contínua que vem do oceano. Este vento desloca, grão a grão, a fina areia da praia em direção ao calçadão.

O coco gelado custa R$0,70, a sombra é grátis. Grátis apenas para dizer que não há valor que justifique uma obra da Natureza.

À noite, pode-se conhecer o Recife Antigo. Na Rua Bom Jesus, os restaurantes perfilados por detrás das antigas fachadas, espalham mesas e cadeiras nas calçadas. Na boa conversa, a espuma do chopp não deixa a garganta secar e uma excelente canção acaricia os ouvidos. A lua, justificadamente exibicionista, não poderia deixar de surgir e isso parece inspirar o cantor, que ao ar livre prioriza a Bossa-Nova.

Mas se é quinta-feira o ambiente se agita. Todo o Recife Antigo se toma. Tem exibição de frevo, maracatu, capoeira, parece carnaval. Tem "Dançando na Rua": grupos musicais se exibem em um palanque para que todo o povo dance sobre tablados. Quem não trouxe par, é só convidar um dançarino ou dançarina, identificados no uniforme, e começar a bailar.

Olinda é tão próxima que não se percebem os limites. A visão panorâmica, as igrejas antigas, as ruas estreitas e carregadas de história do Patrimônio da Humanidade. Os olhos invadem, indecorosos, o espaço entreaberto das portas e janelas das antigas casas de Olinda. Eles querem descobrir tesouros esculpidos, pintados ou bordados. Tesouros promotores da fé em forma de venerável imagem, ou promotores da paz, em forma de branco bordado.

A essa altura a noite já caiu sobre as margens do Rio Capibaribe. Um velho catamarã já está para sair e deslizar sobre as águas em um passeio. Estamos de novo nas proximidades do Recife Antigo. O mar e a cidade nos avizinham. Mais uma vez, alguém canta uma bela melodia. É quando se constata que a incansável brisa continua presente, enquanto a embarcação começa a se deslocar. O céu agora é negro e amplo, e, sem dúvidas, pertence à lua. Esta lua parece uma bela noiva a esparramar seu véu, em forma de reflexo, sobre as águas do Capibaribe. Neste momento, se deixarmos o romantismo se apossar de nossa alma correremos dois riscos: ou nos apaixonaremos ou choraremos de saudade. ###


Sem Eira Nem Beira

(1999)




O que Deus Está Fazendo?

(18-02-2006)

Quando eu era pequeno diziam que Deus morava no céu - para onde as pessoas iam depois que morriam, embora o que eu visse nesses momentos, fosse um caixão ser engolido pela terra.

O céu de Deus, no entanto, tinha um azul fantástico que eu nunca entendi porque o mundo não parava e sentava simplesmente para admirá-lo. Nele, alguns chumaços de nuvens brancos absorviam o brilho intenso do sol. Se no fim da tarde trovejasse, dava medo: Deus estava ralhando. Se começasse a chover, meu colega dizia que São Pedro estava mijando. Mas se o azul se escondia e as nuvens, antes brancas, multiplicassem e ficassem com a cor de pano de chão, era hora de se recolher... Isso, se não tivesse uma animada pelada debaixo de chuva!

Começava a competição; um bando de moleques embebidos de suor e chuva disputava a bola e gritavam gol mais forte que qualquer trovão. Não importava se a tempestade escurecera o dia porque os olhos daqueles moleques eram como refletores iluminando a esquina - Maracanã imaginário. Um raio riscava o céu, seguido de um estrondo e grito de gol.Até que uma mãe zelosa aparecia de guarda-chuva carregando seu filho para casa e fazendo a partida parar. Aí o sangue esfriava e alguém percebia: "Ta ficando frio e eu nem lanchei." A pelada acabava uma hora antes do fim da chuva e quando o céu se abria revelava estrelas.

Uma imensa lua amarela brotava no fim da estrada. Tudo era mais quieto na noite e o céu - casa de Deus e dos que se foram - escurecia. Enquanto meu irmão mais velho esperava o rádio terminar de transmitir A Voz do Brasil para começar a transmissão do futebol, olhei pro céu e perguntei: "O que será que Deus está fazendo agora?"

Abraços!
Bira.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Crônicas de Um Velho Caderno

Amigos!

Escrever... Escrever e guardar o caderno na gaveta escura não lhe conduz ao sonho. Para as traças da gaveta, palavras são petiscos e as folhas que elas não comem ressecam, amarelam e se desfazem. O tempo perdido também desfaz o sonho e o ser se adapta à sobreviver. Sobreviver é viver sem sonho... Até que um dia a mobília é trocada e se reviram papéis, documento e fotos. Embaixo de tudo jaz o velho caderno dos sonhos amarelados...

À Janela
16-05-1978.
(á memória de Muca e Victor)

Sentado à janela.
Em suas mãos sem cor destacavam-se as veias e o baralho, enrugado e velho como seu corpo.
Jogava paciência.
O coro constante da geladeira emudecia o relógio.
Na mesa desfilavam cartas que se fundiam com as figuras que passeavam em sua mente.
Vagava entre o passado e o presente.
A morte lhe expulsava a vida que, mesmo rara, ainda figurava em seu rosto, quando me contava os fatos do “Tempo Bom”.
E seus olhos reluziam o brilho do dia, seu sorriso demarcava as rugas da face.
Esta face sumiu, mas estará presente nas minhas recordações quando eu também estiver sentado à janela.###



Avalanche
20-05-1978

O sol nasce atrás das nuvens fazendo morrer a euforia do samba ao canto do galo. Nas quadras dos morros pandeiros silenciam e surdos ouvem os trovões do céu. A chuva esfria peles mau-cheirosas e já molhadas de suor. Sapatos que levantavam poeira atolam-se na lama. Lábios grossos e alvos dentes que se abriam de alegria, apertam-se de raiva quando olhos rubros vêem a cidade, lá embaixo, a dormir com expressão de sorriso. Então as mãos se fecham fortemente e os corpos possuídos descem o morro às carreiras e aos gritos. De ladeira em ladeira, de morro em morro, a avalanche aumenta. No meio, a cidade ainda dorme sem saber que o ódio lhe vem junto à água barrenta.

A cidade acorda aos berros e punhaladas, cabeças a rolarem no chão vermelho até não sobrar mais nenhuma.

Sobre os urros e sob o sol que agora surge, as armas são suspensas brilhando triunfantemente. As mãos voltaram a se abrir para bater nos pandeiros, as bocas para sorrindo se fartarem. Alegria! Samba! Cerveja! E o cansaço que leva os heróis ao sono.

Despertam sobressaltados ao se verem em seus barracos. Correm à janela e, lá embaixo, a cidade gargalha de deboche. Todo o corpo treme e aquece de furor. Olham o sol se pondo, carregam os seus revólveres... 
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Hoje no Ponto

Esperava o ônibus como fazia todos os dias às seis da tarde, um tanto cansado e com sono, mas com o pensamento no colégio.

O ponto estava cheio de gente ansiosa para chegar em casa e demonstravam isso mergulhando no próximo veículo já lotado. Neste, via-se uma salada de pessoas regadas à suor. Rostos sérios e pensativos. Mas... Olha aquele ali no meio! Sou eu! Eu?! Ué, será que tenho um sósia?... No entanto, ao lado deste, eu! E outro eu! Ali todos são eu!!! Viro o rosto, estou sonhando. E me vejo circundado por tantos eu. Ao meu lado, do outro lado da rua, até onde minha vista alcança! Pego o lenço e fecho os olhos para enxugar a face vermelha.

Já são onze da noite. Bocejo apagando a luz. Deito-me e no escuro penso: ‘Quanto mais tento ser diferente, continuo sendo tão igual às pessoas!’

Fecho os olhos me ajeitando na cama, afinal, amanhã às cinco e trinta, acordo para mais um dia de trabalho.

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A Fuga
1981

Duas cachaças lhe deram coragem suficiente. Abriu a porta com violência, e como se fosse um policial em vistoria, foi revirando gaveta por gaveta, atirando no assoalho as roupas, separando as suas, para socá-las na mala. Não falava nada. Apenas respirava forte com nervosismo e olhar transfigurado. Jogava as meias, o aparelho de barbear, a colônia For Men, tudo que era só seu. Esforçou-se para passar o zíper fechando a mala abarrotada. Nada mais olhou. Ergueu a bagagem na mão direita e partiria tão bruscamente quanto chegou, se a mulher atordoada não se atirasse à sua frente.

Durante esses poucos minutos ela ficou petrificada ao canto do quarto. Observava atônita o marido que parecia ter ficado louco. Queria perguntar-lhe: “O que é isso? O que está havendo?” Mas a frase não saíra, prendera-se na garganta. E ela não entendia nada, com os olhos arregaçados pelo susto e medo, observava quieta e gelada o desespero do homem. Por isso se atirou: se o súbito lhe bloqueava as palavras, não poderia bloquear seus gestos. Tentou agarrar-se ao marido. Paralisá-lo como uma camisa-de-força, anestesiá-lo com o olhar. Mas não conseguiu. Faltou-lhe poder nos braços e nos olhos para conter a fúria que se apossara dele. Com um empurrão foi atirada na cama que afundou com o impacto da queda. O barulho fez acordar a criança que lançou seu choro do outro quarto. A porta da sala bateu forte abafando os lamentos da mulher dentro do recinto. O homem partiu.

Depois de muito pensar, a vizinha resolveu verificar o ocorrido no apartamento ao lado: aquela barulheira, a porta batendo e o choro que não parava. Abaixou o volume da televisão e encostou o ouvido na parede. “O que está acontecendo?” E foi à campainha desobedecendo ao conselho do marido:

– Deixa pra lá mulher. Isso é briga entre os dois, não se mete!
– Ouvi passos na escada, Marta deve está só, precisando de ajuda. Não ouve o choro?

Logo a porta abriu, revelando um rosto encharcado e corado pelo pranto da mulher.
– Que foi minha filha? Perguntou a vizinha amparando-a nos braços.

Os soluços não a deixaram responder, davam solavancos no peito interrompendo cada palavra.
– Calma filhinha, não diz nada, ta?... Olha o Marcinho chorando, tadinho!... Vou preparar um copo de água com açúcar pra vocês.

Alguns minutos tranqüilizaram Marta que, enxugando a face, explicava a cena repentina.
– Mas por quê mulher, assim tão de repente? Admirou-se a vizinha.
– Não sei Dona Célia. Será que meu marido enlouqueceu, meu Deus?! E tornou a chorar soluçando de novo.
– Calma filhinha, calma...
– Vou à casa de meus sogros! Decidiu Marta.
– É melhor você não ir hoje, já são quase dez horas...
– Eu tenho que ir, eles devem saber de alguma coisa. Não posso ficar aqui chorando com meu filho! Toma conta dele pra mim dona Célia, por favor!

E saiu atrás do marido.

* * *

Quando partira, Jorge havia saído em disparada no seu carro. Deixou tudo para trás, afundando o pé no acelerador, roncando os motores em busca de Margarida.
Fina flor Margarida, a jovem que o quarentão conquistara e vinha mantendo um caso amoroso durante os últimos oito meses. “Manobro a moça!” Pensava consigo e gabava-se a um amigo que acaso encontrasse num barzinho tomando chope. Dividiu-se então, entre a esposa e a jovem amante.
– Desse jeito não dá mais, já estou cansada de ser a outra! Disse Margarida certo dia.

Jorge se viu perdido então. Não quis trabalhar na manhã seguinte, foi apenas pedir demissão. Já havia decidido. Partiria com a jovem para São Paulo, afinal possuía ótima conta bancária e não teria dificuldade de se empregar naquela capital. Mulher, filho e o resto da família não importavam. Margarida era-lhe muito mais que isso. Ficaria tudo bem. Pagaria uma pensão de divórcio à esposa e ao garoto, constituiria nova família.Passou a noite num hotel e foi, na manhã seguinte, buscar sua amante.

Sol de verão, malas no carro e Margarida ao lado. Pôs o veículo para funcionar e saiu em meio ao “rush” matinal da avenida.

* * *
Onze e meia da noite anterior. Marta batia à porta dos sogros:
– É você Marta? Perguntou a sogra assustada a sogra assustada, mesmo vendo diante de si a nora – Você está chorando?... O que está havendo, meu Deus?
– Jorge partiu! Respondeu jogando-se nos braços da sogra.

* * *
Quando o céu clareou finalmente, foram buscar a criança deixada com a vizinha. Logo saíram mãe, avó e filho em busca de Jorge.
Na empresa souberam do pedido de dispensa e partiram sem saber aonde ir na calçada da avenida.

* * *
Jorge driblava os carros no trânsito da cidade. Sentia-se pouco paciente na ânsia da fuga. Parou descontente no sinal luminoso e acendeu um cigarro com gestos intranqüilos. Olhou Margarida ao lado e teve o ímpeto de beijá-la. Mas, a voz infantil, vinda da calçada, interrompeu seu movimento. Virou-se e viu entre os parentes, seu filho Marcinho, que puxando a mãe com uma das mãos e sacudindo a avó com a outra, arregalava os olhos e gritava:
– Olha o papai! Olha ele lá. Mãe!!... Paiê, a gente ta procurando o senhor!!!
O sinal abriu e os carros buzinaram. O homem vendo que interrompia o trânsito, acelerou a máquina (“Peraí, pai!”) e se perdeu em meio ao fluxo dos automóveis, deixando na calçada aquelas três criaturas que olhavam estarrecidas o veículo sumir na próxima esquina. ###



A Esquina 25 de Dezembro

Um homem seguia uma rua comprida e de trezentas a sessenta e cinco esquinas. Sentia-se cansado e, de certa forma, desanimado. Em cada esquina desta rua denominada “1982”, deparou com fatos tristes e rotineiramente trágicos, formadores de uma paisagem vandalizada. Por isso poucas vezes sorriu com algo prazenteiro que quebrantasse esta fatal rigidez.

De repente, já nas últimas esquinas desta rua, pressentiu flores eclodindo nos canteiros das calçadas e captou no ar suaves fragrâncias. Não resistindo se curvou para colher o primeiro botão, sugando para dentro de si o perfume. Sentiu então uma transformação no espírito apático, ficando estático por alguns instantes, mas logo prosseguiu.

Passaram esquinas e calçadas, multiplicando-se as flores, tornava-se cada vez mais belo o cenário. Gradativamente também, o cansaço e a dor se ausentaram da face e ele sorriu a uma criança que lhe cruzou à frente. Na próxima esquina outras crianças surgiram e eram cada vez mais a brincarem, com coloridos buquês às mãos. Aproximou-se o homem, e, deslumbrado, já não mais caminhava, corria pelo caminho florido e alegre. Transformara-se completamente a paisagem, ficara linda! Então ele refletiu: “Ué, será que sigo a mesma rua que vinha seguindo?” Correu até a próxima esquina para tirar dúvida olhando a plaqueta presa ao poste: “Rua 1982 (ESQUINA 25 DE DEZEMBRO)” “Então é isso!” deduziu – “com tanta escuridão pelo caminho, já nem me lembrava da existência desta esquina!”

Uma menina, puxando-lhe pelo braço, cortou-lhe o pensamento, chamando-o de volta à brincadeira. Totalmente contagiado, deixou-se levar pela garota que o conduziu ao centro da rua, onde seus coleguinhas formavam uma festiva roda girante e cantante. Dando as mãos aos meninos da roda, transformou-se também em criança, cantando e girando na brincadeira. Cantigas de roda se misturaram ao perfume das flores no ar. Pássaros que voavam sobre as árvores, viram no centro do círculo infantil, deitado sobre berço de palha, um bebê que espelhava toda a luz matinal, emitindo raios para alimentar o contentamento que lhe fazia órbita, em magnífico coro:
“Bate sino pequenino, sino de Belém!...” ###

Abraços!
Bira.