quarta-feira, 23 de maio de 2012

Um Corpo Errante

(...) Pensou em sair de fininho mas o garçom, do chopp bem tirado, gentilmente lhe sorriu ao colocar mais um copo espumante e suado na mesa (...)

Montagem com imagens de amigos que saem do Facebook para festas - Bira, 2012.

Um Corpo Errante

Amigos!

Quando chegou na festa, Solano recebeu as boas-vindas da bandeja do garçom que logo passou servindo um chopp geladíssimo. O apreciador da bebida, não se fez de rogado e pegou um copo. "É um chopp bem tirado" - comentou para si mesmo. Se o líquido gelado deslizava sobre a língua e escorria na a garganta, minúsculas bolhas de espuma explodiam liberando prazer.

Mas o prazer não lhe sequestrou por mais que de cinco minutos. Logo percebeu que estava em pé num vasto salão onde não conhecia ninguém - que furada! Havia mesas disponíveis, todas com quatro cadeiras. Para não evidenciar seu deslocamento, preferiu não sentar e aproximou-se do bar. Para ganhar tempo, entrou na fila dos coquetéis e, outra vez, falou consigo mesmo: "O que eu estou fazendo aqui?!"

Era culpa do Facebook, por onde a aniversariante Fernanda lhe enviou um convite para a festa. Foi lá no Face que conheceu a moça há mais de um ano. Recebeu e aceitou seu pedido de amizade, mas não sem antes consultar o perfil da gata e conferir que possuíam 40 amigos em comum. Deu início, então, a uma relação de troca de "curtições" e comentários, "memes" e mimos... Até que um dia, justamente no momento em que espiava as fotos do perfil  da Fernanda, ela surgiu no chat de bate-papo, dizendo:

- Olá!...

Levou o susto de quem é flagrado, mas logo caiu em si:

- Que coincidência!.. - confessou respondendo - Estava no seu perfil vendo as fotos de Buenos Aires... Que bacana!

- Gostou?... Foi o presente de aniversário que eu dei para mim mesma: uma viagem com as amigas!

Rápido como um raio, Solano concluiu que Fernanda não estava namorando. Além de seus pais ou seu irmão, nas fotos do perfil não aparecia mais ninguém lhe beijando ou abraçando e, como quem não quer nada, falou digitando:

- Parabéns!... Dizem que é falta de educação perguntar idade, mas não para uma gata como você...

- To com 23 - digitou Fernanda.

- E a festa do seu niver foi boa?

- Vai ser amanhã, lá no Universitário. Estou te convidando.

- Sério??

-Sério! Vou lhe mandar um e-mail de confirmação com cópia para os organizadores que anotarão seu nome. Você vai?

- Vou. - respondeu Solano, sem pensar, e logo saíram do bate-papo. Um foi tomar banho e o outro dormir para acordar cedo...

- Senhor... Senhor... É a sua vez... Qual é o coquetel da sua escolha? - Agora foi a voz do coqueteleiro da festa, que trouxe Solano de volta ao desconforto local.

- Bem... Pode ser uma caipirinha com vodca mesmo, você faz?... Mas me diz uma coisa: Onde está a aniversariante que eu nem vi? - perguntou reservadamente ao rapaz do bar.

Fernanda ainda nem tinha chegado. Então Solano correu os olhos pelo salão, a começar pelo palco onde um DJ manejava seus equipamentos. A pista de dança ainda estava vazia, bem como metade das mesas ao entorno. Algumas foram juntadas para comportarem dois grupos maiores. Um grupo no canto mais distante do palco e outro bem ao centro do salão. Contou onze cabeças no grupo do centro. Ali todos tinham percinges, tatuagens e cabelos com cortes alternativos, às vezes coloridos. Batons, esmaltes e roupas pretas eram pontos comuns entre quase todos, que bebiam cerveja e sorriam, tirando fotos com celular. Solano gostaria de saber em torno de que assunto aquela turma gravitava, mas não gostaria de se transformar num deles para receber uma chave de acesso.

Não conseguiu ver detalhes de um outro grupo mais distante. Apenas que seus membros eram menos extravagantes. Entre bebericamentos, eles tentavam desenvolver algum assunto em concorrência com a música alta. Solano apostaria que seriam amigos de trabalho da Fernanda e que o cara mais velho do grupo, seu chefe. Solano também gostaria de saber o que falavam, mas caiu em si ao perceber esse desejo, e pela terceira vez falou consigo mesmo:

- Puta que pariu!... Sou um corpo errante nesta festa!

Pensou em sair de fininho mas o garçom, do chopp bem tirado, gentilmente lhe sorriu ao colocar mais um copo espumante e suado na mesa. Relaxou para beber mais um gole e constatou que o salão já estava quase cheio, quando o pessoal da mesa ao lado pediu licença para pegar uma de suas cadeiras.

- Pois não, pode pegar! - respondeu com um sorriso falso de quem pensava: "Até as cadeiras vazias estão me abandonando!..."

Naquele momento as luzes se apagaram e um holofote foi aceso, lançando seu foco para a porta de entrada, iluminando Fernanda que ali surgiu - no melhor estilo dos lutadores de UFC. O DJ aumentou o som e tocou o refrão de "Like a Prayer", com  Madonna. A estrela da festa ergueu os braços balançando os cabelos no transe da música e invadiu a pista de dança, agora tomada por gente. Luzes coloridas tingiram a fumaça cenográfica que aspergia do palco. Fachos de laser varavam o ar, potencializando o movimento das pessoas. Estupefato, Solano observava, lá de sua mesa, a transformação do ambiente. Quase todos ao seu lado foram para a pista, mas agora ele tinha o escuro como aliado, então continuou sentado e bebericando.

Solano gostaria de dar parabéns à Fernanda, mas naquele contexto isso seria inconveniente e pensou: "Que loucura!... Estou numa festa de aniversário onde é impossível falar com a aniversariante, que aliás, nem conheço pessoalmente e onde não conheço ninguém!... Eu poderia ir embora ou me infiltrar entre a fumaça da pista que nada mudaria, a não ser pelo meu ponto de vista..." Então ergueu o copo e falou em voz alta:

 - Estou invisível!... Um brinde à minha invisibilidade!

Foi quando um facho errante de luz, num instante, atravessou e iluminou o copo erguido. Era luz refletida e partida em pedaços por um globo espelhado, pendurado no teto. Solano olhou para o globo e lembrou do baile de despedida da sua turma de ensino médio, em 2001. Tinha quinze anos e namorava a menina mais bonita da escola. Tirava as melhores notas e era um dos craques no futebol de salão. Só que seus pais mudaram de cidade e ele não se enturmou de novo. Ficou cada vez mais errante. Perdeu popularidade mas descobriu o Orkut. Hoje, ele tem o Facebook. Na rede, reencontrou seus amigos de escola e acrescentou muito mais gente. Era tantos amigos, que se tivesse de encontrá-los cara-a-cara, levaria anos fazendo isso. Descobriu que na internet os errantes se agrupam num clique e aprendeu a clicar como ninguém.

- Mais um chopp, Senhor? - era o garçom passando de novo.

Aceitou outro copo. Pensou em falar alguma coisa com o garçom mas desistiu: se aquilo ali fosse internet o status do garçom seria "ocupado". Não sei dizer se Solano já estava bêbado, mas naquela hora concluiu que na internet não existia solidão - tem sempre alguém online, no Face, trocando "memes" e mimos, como fez Fernanda na hora que lhe convidou. Se presencialmente Fernanda está offline, tem muito amigo online esperando pelos seus cliques... Era isso que Solano precisava para enfim deixar a festa.

Abraços!
Bira.


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Amor de Mãe

(...) A menina que veio da roça já não brincava mais com a enxada. Cedo se tornou mulher e quando lavadeira, suas mãos perderam os calos ganhando unheiros provocados pela espuma do sabão (...)

Nesta foto de 1950, à esquerda a minha Tia Nancy (muito linda!), ao centro, uma amiga não identificada e à direita a minha mãe, Alzira, com meu irmão Ubiratan no colo - local provável: Campo de Santana, no Centro do Rio.

Amor de Mãe

Amigos!

Minha mãe não lerá este blog.

Não é nada disso que vocês estão pensando... Aos 84 anos, ela está vivinha! O fato é que ela não aprendeu a ler, mesmo. Na época do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), lá nos idos de 70, eu era criança mas ainda me lembro dela tentando assinar o nome. Infelizmente desistiu pois lhe faltavam óculos.

Minha mãe nasceu nos extintos laranjais de Araruama. Logo cedo aprendeu a manejar a enxada. Chegou no Rio em 1942 quando tinha 14 anos. Engravidou de Oscar, seu primeiro marido. Perdeu o primeiro filho, ainda recém nascido. O segundo vingou, é o João Batista, meu irmão mais velho, hoje com 69.

Eu não conheço os detalhes pois só nasci 17 anos depois. Mas ela se separou e se casou, de fato, com meu falecido pai, Jacy que gostava de batizar seus filhos com nome de índio. Meu velho nunca ganhou muito bem, mas foi agraciado por Getúlio Vargas - O Pai dos Pobres, que construía conjuntos residenciais para o povo, em Irajá. Não eram apartamentos compactos como se vê hoje, eram casas com jardim e quintal amplo, repletas de manga, cajá, goiaba, banana, cachorro e galinha. Pouca coisa resistiu ao tempo em Irajá desde aquela época. Os portugueses que plantavam hortaliças se foram e nos vastos canteiros de couve germinaram prédios. Muitas famílias mudaram, outras creceram e os quintais que ganharam casas, perderam árvores. A Paróquia de N. Sra. da Apresentação, segunda igreja do Rio de Janeiro, continua lá. O campo de futebol dos Filhos de Irajá F.C. também, mas com tapete de grama sintética... Irajá impermeabilizou seu solo.

Quando meus pais se separaram eu tinha 6 anos. João, meu irmão mais velho já estava casado e Ubiratan, aos 15 anos já começava a trabalhar. Minha mãe recebia pensão alimentícia, mas não era suficiente. Por isso tinha de lavar e passar muita roupa para sobreviver. Mesmo assim, lembro de ela ter me matriculado num jardim de infância - Sapatinho de Cristal - cujo ônibus vinha me buscar na porta de casa. A mulher analfabeta, lavadeira e desquitada, preocupava-se com a edução de seu caçula. Acho até que nem fiquei estudando muito tempo naquele jardim. Talvez ela nem tenha conseguido pagar as mensalidades, mas me lembro dos anos que ela pagou explicadoras para mim. A intenção era boa mas eu detestava. Uma das explicadoras, simplesmente me colocava para fazer algarismos romanos todos os dias!... Eu não aguentava mais!

A menina que veio da roça já não brincava mais com a enxada. Cedo se tornou mulher e quando lavadeira, suas mãos perderam os calos ganhando unheiros provocados pela espuma do sabão. Seu esmalte vermelho não era um simples sinal de vaidade, mas o disfarce oportunista das unhas inflamadas. Passava horas debruçada sobre o tanque de roupas, promovendo um rodízio de cigarros nos lábios. Falava muito. Chorava muito. Jogava muito no bicho e quando ganhava, sorria muito! Quando eu queria comer um doce, ela fritava banana do quintal e mergulhava no açúcar ou simplesmente fazia pirulitos de açúcar derretido para me dar...

Neste Natal de 2011, no terraço lá de casa, minha mãe posa para foto comigo e seus netos.

Para mim, foi extremamente difícil deixar a casa de minha mãe onde mesmo depois de casado morei por sete anos. As coisas ali já não estavam dando certo, mas aos 30 anos, o cordão umbilical não rompido teria virado uma corrente.

Talvez fosse até legal que minha mãe pudesse ler e entender esse texto, mas um texto não é nada. A menina roceira, que se tornou uma velha senhora não precisou se instruir para saber o que é amar. Bastou-lhe ser mãe!

Desejo um feliz dia das mães para aquelas nos ensinam a amar!

Abraços!
Bira.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Percentual de Presença

Amigos!

A cabeça de Pedro parecia estar mais cheia do que aquele vagão de metrô. Daí que ele nem pecebesse o quanto estava espremido no meio das pessoas. Colocou os fones de ouvido e ligou o rádio do celular, muito mais para não ter de escutar as conversas do que propriamente ouvir músicas. O bafo de muita gente respirando próximo, no entanto, era inevitável.

O sol da manhã refletia seu brilho quente na chapa de aço do trem que corre a céu aberto na linha 2. As janelas lacradas de vidro temperado são telas de TVs que todas manhãs passam o mesmo filme - de Pavuna à Central do Brasil, quando a composição submerge aos prédios da cidade. Foi no entra-e-sai dos passageiros da Estação Central que Pedro descobriu seu desconforto físico e se fez presente. Até então, seus sentimentos viajavam num outro trem, de pensamentos e planos, que há muito tenta chegar à Estação Solução. Neste outro trem, Pedro é uma laranja, espremido não por pessoas mas por dívidas. Se uma dívida desembraca na próxima estação, outras duas entram aumentando o aperto! Ufa!...

Quando Pedro retornou ao aperto físico do metrô, desligou os pensamentos e retirou os fones de ouvidos do celular-rádio que perdeu sinal quando entrou no túnel. Toda manhã era assim, pipocando entre o aperto das pessoas e dos problemas, Pedro iniciava seu o dia.

No trabalho bastava-lhe o aperto do patrão. Não dava para colocar fones, nem se refugiar entre as dolorosas dívidas. O percentual de presença de Pedro ali deveria ser total, até que soasse o apito, anunciando o fim do expediente. Então Pedro respirava pela primeira vez no dia e seus lábios secos ficavam úmidos de cio ao pensar num chopp.


A libido etílica de Pedro lhe atirava num bar, onde ele recopulava entre sonhos e amigos idelistas, saudosos e politizados. Pela primeira vez no dia podia espalhar-se, abrir o palitó e dasatar a gravata. Falar sacanagem e filosofar ao mesmo tempo - não esquecendo de molhar a garganta com mais um gole do líquido amarelo e espumante. O percentual de presença de Pedro ali era total, a ponto de esquecer do passar das horas! -  Para dizer a verdade, acho que Pedro não estava propriamente ali, senão teria percebido que o garçom já recolhia cadeiras e mesas para lavar o chão... Onde estaria Pedro, então?

Horas depois Pedro dorme e baba na cama. Deitado de bruços com uma perna dobrada e outra esticada, um pé calçado e outro descalço, às duas da magrugada. Não lhe pergunte na manhã seguinte como chegou em casa, se sonhou ou não sonhou, ele não sabe a resposta. Para dizer a verdade, acho que Pedro nem vai lhe ouvir. Pois ele estará com fones de ouvido no vagão lotado ou completamente ocupado cumprindo ordens do patrão. Pode até ser que você fale com ele lá no bar, entre as filosofias e sacanagens, junto aos amigos inteligentes e politizados, mas não espere encontrá-lo de fato:

Onde quer que esteja, acho que o percentual de presença de Pedro é quase sempre zero!

Abraços!

Bira.