sexta-feira, 22 de março de 2013

A Fuga

(...) O barulho acordou a criança que lançou seu choro do outro quarto. A porta da sala bateu forte abafando o desespero de Marta dentro do recinto (...)

Colagem com recortes de imagens da internet. Bira, 22-03-13.

A Fuga

Amigos!

Duas cachaças deram a Jorge coragem suficiente. Abriu a porta com violência, e como se fosse um policial em vistoria, foi revirando gaveta por gaveta e atirando roupas no chão. Sem dizer nada, socou calças e camisas na mala com movimentos rápidos e desconexos. Respirava forte e tinha o olhar transfigurado. Foi jogando as meias, o aparelho de barbear, a colônia For Men e tudo que fosse só seu. Por pouco o zíper não fechou na mala abarrotada. Nada mais olhou. Ergueu a bagagem com a mão direita e partiria tão bruscamente quanto chegou, se a mulher atordoada não se atirasse à sua frente. Até então, ela manteve-se estática no canto do quarto. Observava atônita o marido que parecia estar louco. Quis lhe perguntar: “O que é isso? O que está havendo?” Mas o fermento da surpresa transformou suas frases num bolo de ar que os lábios espremidos não deixavam sair, nem a garganta cerrada engolia. A mulher não entendia nada e observava com olhos do medo que fazia seu corpo suar e ao mesmo tempo gelar. Por isso se atirou: se o súbito lhe bloqueava as palavras, não poderia bloquear seus gestos. Tentou agarrar-se ao marido. Paralisá-lo como uma camisa-de-força, anestesiá-lo com o olhar. Mas não conseguiu. Faltou-lhe poder nos braços e nos olhos, suficientes para conter a fúria de Jorge. Com um empurrão foi atirada na cama que afundou na queda. O barulho acordou a criança que lançou seu choro do outro quarto. A porta da sala bateu forte abafando o desespero de Marta dentro do recinto. O homem partiu.

Depois de muito pensar, a vizinha resolveu verificar o ocorrido no apartamento ao lado: aquela barulheira, a porta batendo e o choro que não parava. Abaixou o volume da televisão e encostou o ouvido na parede. “O que está acontecendo?” – murmurou, e foi à campainha desobedecendo ao conselho do marido:

– Deixa pra lá mulher. Isso é briga entre os dois, não se mete!
– Ouvi passos descendo a escada, Marta deve está só, precisando de ajuda. Não ouve o choro?

Logo a porta abriu, revelando um rosto encharcado e corado pelo pranto da mulher.
– Que foi minha filha? Perguntou a vizinha amparando-a nos braços.

Agora eram os soluços que não queriam lhe deixar de falar. Solavancos no peito interrompiam cada palavra.
– Calma filhinha, não diz nada, tá?... Olha o Marcinho chorando, tadinho!... Vou preparar um copo de água com açúcar pra vocês.

Alguns minutos tranquilizaram Marta que, enxugando a face, descreveu a cena repentina.
– Mas por quê, mulher, assim tão de repente? - Questionou a vizinha.
– Não sei Dona Célia. Será que meu marido enlouqueceu?... Meu Deus! - E voltou a chorar, recuperando os soluços.
– Calma filhinha, calma...
– Vou à casa de meus sogros! Decidiu Marta.
– É melhor você não ir hoje, já são quase dez horas... Liga pra lá...
– Eu tenho que ir, eles devem saber de alguma coisa. Não posso ficar aqui chorando com meu filho! Toma conta dele pra mim dona Célia, por favor!

E saiu atrás de notícias sobre o paradeiro marido.

*           *           *

Quando o pé direito de Jorge esmagou o acelerador contra o piso do carro, o motor do veículo urrou de dor. Em cada curva da estrada as rodas velozes gritavam de medo. O vento frio da noite se atirou sobre o automóvel, invadiu as janelas abertas e entupiu os ouvidos de Jorge. Mas ele nada sentia além da urgência de encontrar Margarida. A jovem com nome e encanto de flor - primeiramente um capricho de um quarentão orgulhoso diante de amigos nos papos de bar, depois, uma paixão obsessiva que atormentava sua alma. Sem que ele próprio percebesse, foi deixando de se gabar por ter a amante nas mãos. No decorrer de oito meses, o orgulho deu vez ao medo de perdê-la e virou pânico, quando Margarida pronunciou a frase:

– Desse jeito não dá mais, já estou cansada de ser a outra!

Foi quando Jorge se viu perdido. No dia seguinte não foi trabalhar, apenas pedir demissão. Já havia decidido. Partiria com a jovem para São Paulo. Tinha dinheiro no banco e capacidade para arrumar novo emprego. Mulher, filho e o resto da família não importavam. Margarida era mais que isso. Com o tempo, ficaria tudo bem. Pagaria uma pensão à esposa e ao filho. Começaria de novo. Passou a noite solitária num hotel e no dia seguinte foi buscar a amante.

A manhã trouxe um sol de verão que deu brilho aos cabelos e à pele de Margarida. As malas foram postas no carro que se misturou ao trânsito da avenida, rota de fuga para uma nova vida...

*           *          *

Onze e meia da noite anterior. Marta bateu à porta dos sogros:
– É você Marta? Perguntou a sogra assustada, mesmo vendo diante de si a nora – Você está chorando?... O que está havendo, meu Deus?
– Jorge partiu! Respondeu jogando-se em seus braços.

*           *           *

Quando o céu clareou finalmente, mãe e avó foram buscar a criança deixada com a vizinha. Logo saíram em busca de Jorge.
Na empresa souberam do pedido demissão e de lá partiram sem saber aonde ir, nem que direção tomar pela calçada da avenida.

*           *           *

Impaciente, na ânsia da fuga, Jorge driblava os carros no trânsito da cidade. Descontente, parou no sinal que tinha a cor da ponta de seu cigarro. Fumava com gestos intranquilos, mas quando olhou para Margarida e teve o ímpeto de beijá-la. Uma voz infantil, no entanto, vinda da calçada, interrompeu seu movimento. Virou-se e viu seu filho Marcinho puxando a mãe com uma das mãos e sacudindo a avó com a outra. Com os olhos arregalados o menino gritou:

– Olha o papai! Olha ele lá. Mãe!... Paiê, a gente tá procurando o senhor!!!

O sinal abriu e os carros detrás buzinaram. Jorge vendo que interrompia o trânsito acelerou o automóvel (“Peraí, pai!”) e se perdeu no trânsito. Sobre a calçada, aquelas três criaturas olhavam impotentes e estarrecidas, o veículo sumir na próxima esquina. ###

Abraços!
Bira.                                                                            



quarta-feira, 6 de março de 2013

Atiradores de Pérola - Parte II

(...) Quando acordou, César se espreguiçou esticando os braços e estufando o peito. Parecia um imperador do deserto contemplando seu reino de barro (...)

Lágrimas são Pérolas - Montagem com recortes de imagens da internet - Bira, 2013.

Atiradores de Pérola - Parte II

Amigos!

- Para ler a Parte I Clique AQUI.

Parte II - O Choro Faz Germinar Pérolas Latentes...


Outra semana se passou e o barro seco avançou sobre o oásis que foi reduzido a menos da metade - uns 200 m2. A lagoa ficou com apenas 4 metros de diâmetro. Roberto e Altair não retornaram. Os 19 habitantes que ali ficaram já não tinham emoção ou demonstravam desespero. Já não sentiam nada além de inveja dos que se foram junto com a cidade - numa espécie de morte sem dor.

César, o mestre de MMA, no entanto abriu mão dos escrúpulos e resolveu liderar seu grupo de alunos para dominar o local. Primeiramente, os sete homens ordenaram que toda comida lhes fosse entregue. A partir dali, todos os demais receberiam uma parca ração diária. Ninguém teve forças ou ânimo para se opor. Nem mesmo os jovens jogadores do Acesita Esporte Clube.

Naquela noite, César reuniu seu grupo em volta da fogueira, onde assaram os últimos peixes retirados da lagoa e se apossaram das quatro garrafas de uísque que Chico, o bebum, escondia entre os trapos como tesouro. Gargalharam ao ver o sofrimento do velho alcoólatra observando seu precioso líquido ser consumido por bocas alheias, provocando a cada gole, caretas impiedosas nos componentes da recente gangue. O bando não precisou secar todas as quatro garrafas para se encorajar e promover um estupro coletivo em Aline. A mulher ainda tentou resistir, em vão, e feito as garrafas de uísque, foi brutalmente consumida pelos sete homens. Como os goles da bebida que queimando as gargantas distorciam as faces, o contato com a vulva da jovem provocava nos homens caretas de um diabólico prazer. De todos os jeitos, a mulher foi impiedosamente violada.

Na manhã seguinte, o bando sentia-se poderoso e saciado. Desapareceu das suas almas o desejo de morrer. Morrer para quê, se o pouco que sobrou do mundo lhes pertencia? Quando acordou, César se espreguiçou esticando os braços e estufando o peito. Parecia um imperador do deserto contemplando seu reino de barro. Sem dizer palavra sentiu que tudo aquilo era seu e com olhar brilhante de orgulho se desintegrou no ar, seguido de todo o seu bando. Quinze dias depois do grande desastre, sete pessoas voltavam a sumir em Timóteo.

Aliviados e famintos, os habitantes do oásis se atiraram sobre os mantimentos que o bando havia apreendido. Cada um apressado por saciar sua própria fome enchia a boca feito animal. Mas, por encanto, o alimento sumia antes de ser mastigado. Aline, sem forças e ferida, manteve-se afastada, aguardando pacientemente pela vez. Observou preocupada que daquele jeito nada sobraria e todos continuariam com fome. Viu porém, que o velho bebum conseguiu se alimentar com um pedaço de linguiça que Alaor lhe repassou. Lembrou-se do discurso do padre na última Páscoa e gritou:

Parem todos!... Desse jeito não vai sobrar nada e ninguém vai se alimentar. Vocês precisam repassar a comida. Só se alimentem da comida que lhes foi passada, como fez o velho Chico... Ou o alimento continuará sumindo na própria boca!

"Dito e feito!... Afinal de contas, de que adiantaria se livrar de César e sua gangue para depois continuar cada um por si?" - pensou Aline.

Sem que ninguém se aproximasse dela, a moça ouviu um sussurro do lado esquerdo:

É preciso dar o que não tem ou não se acredita ter...


*                   *                    *

Se as 12 pessoas restantes no oásis aprenderam forçosamente a dividir para sobreviver, faltava-lhes transformar esta prática em sentimento fraterno. Mas ali, poucos ainda possuíam algum sentimento. Eles acreditavam que a supressão das emoções seria fundamental para sobreviverem, o máximo possível, naquele ambiente desolador. Falava mais alto o instinto de sobrevivência em cada ser.

Mais uma vez, Aline percebeu algo: A desintegração de seus sete agressores ocorreu justamente quando eles não quiseram mais morrer. Justamente quando se sentiram felizes e poderosos donos do deserto, desejando dar um jeito de viver e reinar naquele inferno. Mais uma vez, sem que ninguém se aproximasse, um novo sussurro se fez ouvir por Aline:

Para que morte lhe liberte desse mundo, primeiro é preciso acreditar que o tem nas mãos...

Quem é você que me sussurra? O que quer que eu faça? - perguntou Aline em pensamento.

Palavras sussurradas são como pérolas sorrateiras - respondeu o sussurrante - Se essa gente faminta optou por agir como porcos, que valor dariam às pérolas?

*                    *                    *

Oito meses passaram reduzindo o tamanho do oásis a 100 m2. A lagoa resistia, mas ficou com apenas de 3 metros de diâmetro. A fome, no entanto, aumentou, obrigando os 11 homens a cavalgarem cada vez para mais longe. Iam às buscas de algum alimento, mesmo que vencido. A água da lagoa perdera a qualidade e só era bebida em último caso. Durante meses, a alimentação precária não deixou que fosse notada a gravidez de Aline, nem por ela mesma. Perto de parir, no entanto, sua barriga ficou indisfarçável. A mulher que engravidou no estupro iria parir na desolação. Aflita, nunca mais ouviu sussurros e juntamente com os "porcos", só conhecia uma regra de sobrevivência: repassar as parcas migalhas ou ver a comida sumir. Num repentino acesso de raiva, jogou uma pedra no espelho da lagoa e percebeu que as ondas circulares provocadas pelo choque, estranhamente tomaram a direção contrária. Elas seguiram das bordas para o centro da lagoa. Estranhou o fato, mas banalizou o susto pensando: "Deve ser é mais um desses fenômenos mágicos que vêm ocorrendo..." Logo, a gestante assustou-se de verdade ao perceber que pedra parecia ter aberto um furo no fundo da lagoa. Lentamente, toda a água começou a escorrer para ali, feito o ralo destampado de uma pia.

Quando amanheceu no sexto dia do oitavo mês, restavam apenas capim e árvores secas no oásis moribundo. A lagoa secou e se transformou em um poço, cavado com muito sacrifício pelos homens magros e sem vigor. Dali saía a água para os animais que também emagreceram. Naquele dia, pouquíssimo alimento foi encontrado e dividido no fim da tarde. Todos comeram sem nada dizer. Mas uma vez eles negavam seus sentimentos para não chorar e resistir naquele contexto.

Na manhã seguinte, ninguém teve força para procurar comida. Permaneceram escorados nas árvores secas, totalmente cansados. Eles queriam secar feito as árvores, mas essa mágica não lhes foi concedida. Foi então que os seus olhares secos perceberam no céu uma faixa de azul surgindo por detrás da última montanha. Saídos de trás de um morro próximo, surgiram oito cavalheiros imponentes que atiravam algo sobre o solo. Alaor e Aline gritaram por socorro com a pouca voz que possuíam. Viram, aliviados, que dois dos cavaleiros vieram em sua direção. Mas os homens não pararam para socorrê-los. Eles apenas atiraram pérolas que ao tocar no solo se multiplicavam e se espalhavam em todo entorno. Pelo chão seco do vale se espalhavam as pérolas e ninguém do extinto oásis entendeu o que ocorria.

Água!... Comida!... - gritavam, enquanto os cavaleiros apressados se afastavam.

Malditos nos trazem pérolas, quando estamos com fome e mortos de sede! - espraguejou o velho bebum.

Aline percebeu o reflexo das pérolas sobre o solo seco. A cintilância se estendia até onde sua vista alcançava. Justamente naquele momento, Aline sentiu as contrações do parto. Pediu ajuda. Um desastrado Alaor esqueceu de suas próprias debilidades e foi ampará-la. Enquanto o neném nascia, Aline não saberia dizer o que doía mais: o corpo no parto ou a alma de quem pari na desolação. O choro forte fez com que todos esquecessem de seus flagelos e se aproximassem para ver o bebê.

É uma menina! - Alaor falou, enfim sorrindo, depois de muito tempo. Como vai se chamar?

Pérola! - disse o velho Chico, abaixando para colher uma e entregando à Aline que em silencio aprovou.

Com cuidado, Alaor acomodou Pérola sobre o peito de sua mãe. Acalentada pelo calor de Aline, Pérola parou de chorar. Então foi a vez de Aline libertar todas as lágrimas aprisionadas nos últimos oito meses. Ao seu redor todos choraram: Alaor, Chico e os jogadores do Acesita. Alguns que àquela altura pensavam nem ter forças para respirar direito, choraram feito crianças. Eles estavam redescobrindo a emoção e resolveram vivê-la pelo resto de tempo que tivessem de vida. Foi quando o choro daquela gente se espalhou incrivelmente pelo chão, multiplicando-se e formando ondas rasteiras que se banharam todo vale. Feito água de chuva, o choro envolveu as pérolas espalhadas e delas brotaram e cresceram, em segundos, belíssimas árvores reflorestando Timóteo. Outras pérolas deram à luz animais, recompondo o paraíso natural do interior mineiro. A pequena faixa de azul no céu se ampliava em direção ao seu centro onde surgiaram chumaços de nuvens.

Os 11 homens estupefatos, ainda estavam debilitados pela fome e sofrimento. Mais uma vez eles tentavam entender o que presenciavam. Dessa vez, no entanto, não era tragédia o que viam. Onde a lagoa secou, voltou a correr o rio e, para amainar a fome, surgiram ameixeiras carregadas de frutos. Imediatamente os homens famintos colheram as ameixas e, como já sabiam, trataram de compartilhá-las primeiro. Desta feita, no entanto, não fizeram isso apenas pelo medo do alimento sumir. Fizeram com o sentimento resgatado no choro. Ofereceram os primeiros frutos para a Aline e depois se sentaram para uma refeição coletiva.

Algo surpreendente ainda estava por ocorrer: ao provarem as belas ameixas doces e robustas, os homens também ficaram robustos, restabelecendo-se milagrosamente. O próprio Chico voltou a se sentir como no tempo de jovem que não bebia, tocando em si mesmo para acreditar. Perceberam, surpresos, que dentro das ameixas não havia caroços e sim, pérolas. As mesmas que quando atiradas se multiplicavam e se espalhavam pelo chão. Lembraram-se dos cavaleiros atiradores de pérolas.

Revigorada, Aline amamentava a sua Pérola. Pensou que ouviria novos sussurros, mas não era mais preciso: Aqueles homens já não eram mais porcos famintos e entendiam o que deviam fazer. Bastou que um olhasse para o outro e que todos olhassem para o céu. Foi quando Mário, o capitão do time de futebol do Acesita enfim mostrou sua liderança, antes adormecida:

Alaor e Chico, nós só temos seis cavalos então vocês não precisam ir... Fiquem aqui com Aline e Pérola que vão precisar de vocês. Eu escolherei mais cinco dos meus e nós vamos fazer o que fizeram conosco: semearemos estas pérolas onde houver destruição.

Mário apontou na direção onde o céu permanecia alaranjado e ordenou a seus homens que recolhessem todas as pérolas e alimentasse com ameixa os cavalos que logo ficaram robustos. Os novos cavaleiros atiradores de pérola atravessariam o vale, agora verde, em direção ao próximo deserto de barro. Semeariam pérolas nos solos que secaram, parodiando a face dos homens que viraram porcos famintos. Pérolas, lágrimas suprimidas por quem se isenta do sentimento.

No próximo deserto estariam outros homens que por conter o choro se tornaram porcos pisoteando pérolas e sentindo fome.

Pérolas-sementes que, pacientes, aguardariam no chão pela rega de um novo choro.
Choro que cedo ou tarde virá, derretendo a máscara de suíno do homem.
Homem que tem medo de admitir o medo, mas que diante do fim irá chorar e reconstruir o mundo.

*                   *                    *

Quando acordou na manhã seguinte Aline não tinha mais casa, celular, pai ou noivo. Ao seu lado, na cabana improvisada estava Pérola, a primeira nativa de uma terra renascida.

Abraços!                                                                                             Página Principal: clique Aqui
Bira.




sexta-feira, 1 de março de 2013

Atiradores de Pérola - Parte I

(...) Não demorou muito tempo para o primeiro e grande susto: Todos os automóveis estacionados na Rua Miguel Maura desapareceram, do nada, em plena luz do dia. O pânico apossou-se das pessoas naquele local (...)
Colagem de imagens sobre um recorte da vista parcial de Timóteo, do alto do Pico de Ana Moura - Bira, 2013.

Atiradores de Pérola - Parte I

Amigos!

Parte I - A Destruição de Timóteo, do Vale do Aço e Talvez do Mundo.


Aline tinha certeza que pôs o celular para carregar ao lado da cama, antes de dormir. Agora, que a luz da manhã invadia as frestas da janela de seu quarto o aparelho simplesmente não estava mais ali. A jovem de 22 anos morava com seu viúvo pai, aposentado aos 64 anos, em uma pequena casa da Avenida Ana Moura, em Timóteo. Ele também acabara de acordar e, no quarto ao lado, coincidentemente procurava por algo: seus óculos. Revirou tudo, não obteve sucesso e se aproximou da porta fechada do quarto de Aline para perguntar:

Filha, por acaso você viu meus óculos?

Não vi não, pai... - respondeu a moça e por acaso o senhor pegou meu celular?...

Embora contrariados riram da situação, cada um de um lado da porta. Então, Aline ficaria sem encher o saco do noivo com suas ligações frequentes e Horácio, seu pai, não conseguiria ler um jornal sanguinário que chegava de Belo Horizonte.

Quando não tinha mais onde procurar o aparelho, Aline arrumou-se e foi para o Centro Comercial comprar um novo. Próximo dali, na Praça 1º de Maio, seu pai encontrou amigos que estranhamente também haviam perdido objetos. A coincidência foi grande: Nicolau, João e Galeno também perderam seus óculos e o solitário Alaor - um solteirão de 58 anos - relatava assustado o sumiço de todas as suas cuecas. Diante da desconfiança dos amigos, Alaor afirmava:

É sério, meus amigos!... Sumiu até a cueca que eu havia vestido!...

E ameaçou abaixar as calças para comprovar a fala. Recebeu um sonoro "Nããããoo!" em coro.

Eu sei que você está nervoso, mas não precisa mostrar esse trem... A gente acredita sem ver! - Disse Horácio com uma ponta de humor, apesar do espanto.

A poucos metros da praça, Aline não conseguiria comprar o celular, pois a loja ainda estava fechada. Estranhou o fato e logo percebeu que curiosos observavam através da vitrine o movimento no interior da TimoCel. Juntou-se a eles para ver dois policiais examinando as prateleiras e mostruários vazios, enquanto um terceiro colhia o depoimento do gerente da loja. Um vigia noturno do Centro Comercial repetia pálido:

Ninguém entrou na loja de madrugada!... Eu teria visto!

De fato, não havia sinais de arrombamento, mas todos os celulares desapareceram da vitrine ou do estoque. A notícia só não se espalhou mais rápido, porque naquela manhã todos os moradores da cidade situada no Vale do Rio Doce procuravam por algo perdido e nem se davam conta de que este sim era o grande fato: Objetos e coisas haviam sumido em Timóteo.

Não demorou muito tempo para o primeiro e grande susto: Todos os automóveis estacionados na Rua Miguel Maura desapareceram, do nada, em plena luz do dia. O pânico apossou-se das pessoas naquele local. Algumas corriam e gritavam sem direção ou sapatos, que também acabaram de sumir. Outros, que ficaram sem camisas ou vestidos apenas com peças íntimas, trancaram-se nas lojas ou salas, de onde já não havia mais mobília. Todos tentavam se proteger de alguma forma, sem saber ou entender o que ocorria.

Um cão assustado latiu atrás das grades de um portão. Seu latido incessante, no entanto, deixou de emitir som. O animal esforçou-se para latir mais alto e foi em vão. Até que o próprio cão sumiu, pouco antes do portão que o aprisionava.

Uma rajada de vento, em instantes, arrastou para o nada todas as árvores dos canteiros centrais da Alameda 31 de Outubro. Com elas sumiram automóveis, motos e bicicletas, estacionados ou em movimento. Gente que ali transitava se desfez sem sequer ter percebido o que ocorria. As lojas, os prédios, o ginásio poliesportivo e a Fundação Arcelor foram apagados. Pelo caminho ficaram apenas escombros do hipermercado. José, que vendia panelas e tachos de alumínio em frente ao mercado encolheu-se de medo, perdeu os sentidos e caiu, para desaparecer junto ao concreto e asfalto que escondiam o chão de terra, agora revelado.

Na Paróquia de São José, no entanto, a missa prosseguia normalmente. Concentrados no ritual, os fiéis não perceberam o que ocorria do lado de fora. Mas a paz não durou muito tempo: quando o padre, no altar, ergueu um cálice de vinho, o crucifixo simplesmente sumiu da parede atrás do pároco. Surpreendido pelos olhares arregalados da plateia e pelo coro de bocas que se abriam em espanto, o sacerdote virou-se para traz e testemunhou momentos terrivelmente mágicos: Não foi apenas o Cristo crucificado que sobre o altar sumia. O belo painel de São José se decompôs e, no instante seguinte, a parede detrás do altar. Desfizeram-se o teto e toda a igreja com seus fiéis. Lojas e prédios do entorno também desapareceram e foi surgindo um imenso descampado em direção aos montes que margeiam a cidade. Incólume no altar, o padre testemunhou em segundos, um deserto de barro ocupando lugar das construções. Ele nem teve tempo de sentir medo e também sumiu - antes mesmo de se benzer.

Na Praça de Jogos, em frente à paróquia, restou apenas um conjunto de mesa e quatro bancos para onde Alaor - o solteirão sem cuecas - foi jogar cartas com velhos amigos, até que tudo sumisse perante seus olhos. Num gesto de desespero, Alaor agarrou-se à mesa de concreto, enquanto teve a impressão de que um imenso furacão sugava sua cidade para um buraco aberto no céu. O homem apavorado fechou os olhos para não ver nada e assim permaneceu, debruçado feito carta sobre a mesa em que jogava. Sobreviveu a tudo, mas não tinha coragem de olhar o que sobrou.

Minutos antes, a oito quilômetros do Centro, dois homens faziam manutenção rotineira nas antenas de telefonia do Pico da Ana Moura. Daquele monte de pedra a 800 metros de altura era possível avistar Timóteo e grande parte do Vale do Aço com seus montes verdejantes. Concentrados no trabalho, eles demoraram um pouco a perceber as mudanças no céu. Primeiramente, todas as nuvens desapareceram. Por trás das longínquas montanhas foi surgindo um tom de céu alaranjado feito a faixa de luz que anuncia o nascer do sol. Assustaram-se ao perceber que os montes também mudavam de cor. Em princípio, a grande distância não lhes permitiu definir o que ocorria. Mas do alto pareciam ver uma onda de plasma que vinha em sua direção, avançando rapidamente feito sombra sobre o vale. Logo, foi possível perceber a onda diluindo as construções de Timóteo e o verde dos seus montes. Paralisados, deram-se conta que em poucos segundos o Pico do Ana Moura também seria atingido. Desesperados começaram a rezar... A reza não pode ser concluída.

Em poucos minutos, onde havia casas, prédios, indústrias, igrejas, ginásios, restou apenas terra e barro seco. Os morros de Timóteo pareciam dunas vermelhas. Hectares de flora abundante foram substituídos por nuvens de poeira que desprendiam do solo. Seria impossível sobreviver ali por muito tempo, a não ser retirando alimentos e água dos poucos escombros que restaram. A esperança, no entanto, foi residir em uma área do tamanho de uma praça, cerca de 500 m2, em Cachoeira do Vale, a quatro quilômetros do Centro Comercial. Ali passava o Rio Piracicaba que secou, mas deu vez a uma pequena lagoa envolta de vegetação. Naturalmente, os sobreviventes da hecatombe subiriam o morro da pedreira para avistar do Rio Piracicaba. Eles se assustariam ao encontrá-lo seco, mas descobririam o oásis que ali restou. E foi assim que ocorreu.

Uma semana depois, a população do oásis era composta por 14 pessoas, oito cavalos e três cachorros. Os animais foram levados por Altair, único sobrevivente do Clube do Cavalo de Timóteo. O homem cavalgou cerca de 15 quilômetros pela cidade destruída, encontrando apenas os três vira-latas que fuçavam alguns escombros. Seguiu até achar o oásis onde ficou e anunciou aos habitantes:

A impressão que eu tive é de que não restou nada no mundo além dessa lagoa. Pelo menos, por dezenas de quilômetros daqui, não deve haver mais nada além dos morros de barro e esse céu laranja e sem nuvens.

A próspera cidade de 81 mil habitantes foi reduzida às seguintes pessoas no entorno da lagoa: O cavaleiro Altair e o enfermeiro Antônio, ambos com 35 anos e que se apresentavam mais lúcidos; Alaor, o solteirão sem cuecas, que no auge do desastre não teve coragem de abrir os olhos e agora não conseguia fechá-los para dormir; Chico, um velho bebum cuja catástrofe, enfim, justificava sua embriaguez, abastecida pelas garrafas que encontrava; nove dos jogadores de futebol que estavam treinando no Acesita Esporte Clube e agora, deprimidos, nem tinham forças para ficarem de pé; por último, Aline - a única mulher do grupo. A filha do viúvo Horácio que antes não vivia sem o celular e agora teria de viver sem o mundo. Foi sobre o mundo, Aline pensou:

Deve estar tudo acabado... A essa altura, Belo Horizonte também já foi destruída - desesperou-se ao lembrar do noivo Roberto não deve ter sobrevivido na capital!...

Seu casamento estava marcado para o mês que vem, no mesmo dia em que ela faria 23 anos. De repente ficou sem noivo, pai, familiares, amigos, igreja, cidade e esperança. Por fim, já nem tinha lágrimas nos olhos que secaram feito o Rio Piracicaba e vagavam perdidos no vale do nada.

Mais dispostos, Altair e Antônio se incumbiram  de encontrar alimentos e roupas no que restou da cidade. Para isso, utilizavam os cavalos e até o faro dos cães. No nono dia pós-tragédia, quando iam sair em busca de alimentos perceberam sete homens se aproximando do oásis, com passadas curtas e ombros caídos pelo cansaço.  Apressaram-se em socorrê-los. Quando Altair se aproximou, de cara, reconheceu César, o professor de MMA e lhe servindo água falou:

César, eu sou Altair lá do Clube do Cavalo, perto da sua academia... Antes de chegar aqui, procurei sobreviventes lá no Centro Sul e não encontrei ninguém, nem mesmo vocês.

O professor e seus alunos não tinham condições de falar até que recobrassem as forças perdidas descansando no oásis, que amanheceu com 21 habitantes.

Na manhã seguinte, Roberto que alertou a todos que o nível da lagoa estaria baixando. Foi César, o recém chegado, que mais se assustou com o fato e perguntou:

E se a lagoa secar? Como vai ser?...

Bem, eu e Altair já conversamos sobre isso e não pretendemos ficar aqui esperando que isso ocorra. Daqui a pouco vamos sair a galope, em direção à Ipatinga e ver o que encontramos... Nossa esperança é retornar aqui para resgatar a todos.

Mas Roberto, ta dando para perceber que não restou nada no mundo. Olha esse céu alaranjado sem urubu ou avião! - Contrapôs-se Alaôr.

Ficar aqui vendo esse lugar secar e os mantimentos acabarem é morrer aos poucos. Vamos tentar alguma coisa. - Completou Altair.

A seguir escolheram os dois melhores cavalos e se despediram dizendo "Voltaremos!". Nem eles próprios acreditavam nisso, mas mesmo assim sumiram mergulhando atrás do próximo morro.

FIM da Parte I - clique AQUI para ler a Parte II

Abraços!                                                                                               Página Principal do Blog
Bira.