Escrever... Escrever e guardar o caderno na gaveta escura não lhe conduz ao sonho. Para as traças da gaveta, palavras são petiscos e as folhas que elas não comem ressecam, amarelam e se desfazem. O tempo perdido também desfaz o sonho e o ser se adapta à sobreviver. Sobreviver é viver sem sonho... Até que um dia a mobília é trocada e se reviram papéis, documento e fotos. Embaixo de tudo jaz o velho caderno dos sonhos amarelados...
À Janela
16-05-1978.
(á memória de Muca e Victor)
16-05-1978.
(á memória de Muca e Victor)
Sentado à janela.
Em suas mãos sem cor destacavam-se as veias e o baralho, enrugado e velho como seu corpo.
Jogava paciência.
Jogava paciência.
O coro constante da geladeira emudecia o relógio.
Na mesa desfilavam cartas que se fundiam com as figuras que passeavam em sua mente.
Vagava entre o passado e o presente.
A morte lhe expulsava a vida que, mesmo rara, ainda figurava em seu rosto, quando me contava os fatos do “Tempo Bom”.
E seus olhos reluziam o brilho do dia, seu sorriso demarcava as rugas da face.
Esta face sumiu, mas estará presente nas minhas recordações quando eu também estiver sentado à janela.###
Avalanche
20-05-1978
O sol nasce atrás das nuvens fazendo morrer a euforia do samba ao canto do galo. Nas quadras dos morros pandeiros silenciam e surdos ouvem os trovões do céu. A chuva esfria peles mau-cheirosas e já molhadas de suor. Sapatos que levantavam poeira atolam-se na lama. Lábios grossos e alvos dentes que se abriam de alegria, apertam-se de raiva quando olhos rubros vêem a cidade, lá embaixo, a dormir com expressão de sorriso. Então as mãos se fecham fortemente e os corpos possuídos descem o morro às carreiras e aos gritos. De ladeira em ladeira, de morro em morro, a avalanche aumenta. No meio, a cidade ainda dorme sem saber que o ódio lhe vem junto à água barrenta.
A cidade acorda aos berros e punhaladas, cabeças a rolarem no chão vermelho até não sobrar mais nenhuma.
Sobre os urros e sob o sol que agora surge, as armas são suspensas brilhando triunfantemente. As mãos voltaram a se abrir para bater nos pandeiros, as bocas para sorrindo se fartarem. Alegria! Samba! Cerveja! E o cansaço que leva os heróis ao sono.
20-05-1978
O sol nasce atrás das nuvens fazendo morrer a euforia do samba ao canto do galo. Nas quadras dos morros pandeiros silenciam e surdos ouvem os trovões do céu. A chuva esfria peles mau-cheirosas e já molhadas de suor. Sapatos que levantavam poeira atolam-se na lama. Lábios grossos e alvos dentes que se abriam de alegria, apertam-se de raiva quando olhos rubros vêem a cidade, lá embaixo, a dormir com expressão de sorriso. Então as mãos se fecham fortemente e os corpos possuídos descem o morro às carreiras e aos gritos. De ladeira em ladeira, de morro em morro, a avalanche aumenta. No meio, a cidade ainda dorme sem saber que o ódio lhe vem junto à água barrenta.
A cidade acorda aos berros e punhaladas, cabeças a rolarem no chão vermelho até não sobrar mais nenhuma.
Sobre os urros e sob o sol que agora surge, as armas são suspensas brilhando triunfantemente. As mãos voltaram a se abrir para bater nos pandeiros, as bocas para sorrindo se fartarem. Alegria! Samba! Cerveja! E o cansaço que leva os heróis ao sono.
Despertam
sobressaltados ao se verem em seus barracos. Correm à janela e, lá
embaixo, a cidade gargalha de deboche. Todo o corpo treme e aquece de
furor. Olham o sol se pondo, carregam os seus revólveres...
###Hoje no Ponto
Esperava o ônibus como fazia todos os dias às seis da tarde, um tanto cansado e com sono, mas com o pensamento no colégio.
O ponto estava cheio de gente ansiosa para chegar em casa e demonstravam isso mergulhando no próximo veículo já lotado. Neste, via-se uma salada de pessoas regadas à suor. Rostos sérios e pensativos. Mas... Olha aquele ali no meio! Sou eu! Eu?! Ué, será que tenho um sósia?... No entanto, ao lado deste, eu! E outro eu! Ali todos são eu!!! Viro o rosto, estou sonhando. E me vejo circundado por tantos eu. Ao meu lado, do outro lado da rua, até onde minha vista alcança! Pego o lenço e fecho os olhos para enxugar a face vermelha.
Já são onze da noite. Bocejo apagando a luz. Deito-me e no escuro penso: ‘Quanto mais tento ser diferente, continuo sendo tão igual às pessoas!’
Fecho os olhos me ajeitando na cama, afinal, amanhã às cinco e trinta, acordo para mais um dia de trabalho.
###
A Fuga
1981
Duas
cachaças lhe deram coragem suficiente. Abriu a porta com violência, e
como se fosse um policial em vistoria, foi revirando gaveta por gaveta,
atirando no assoalho as roupas, separando as suas, para socá-las na
mala. Não falava nada. Apenas respirava forte com nervosismo e olhar
transfigurado. Jogava as meias, o aparelho de barbear, a colônia For
Men, tudo que era só seu. Esforçou-se para passar o zíper fechando a
mala abarrotada. Nada mais olhou. Ergueu a bagagem na mão direita e
partiria tão bruscamente quanto chegou, se a mulher atordoada não se
atirasse à sua frente.
Durante
esses poucos minutos ela ficou petrificada ao canto do quarto.
Observava atônita o marido que parecia ter ficado louco. Queria
perguntar-lhe: “O que é isso? O que está havendo?” Mas a frase não
saíra, prendera-se na garganta. E ela não entendia nada, com os olhos
arregaçados pelo susto e medo, observava quieta e gelada o desespero do
homem. Por isso se atirou: se o súbito lhe bloqueava as palavras, não
poderia bloquear seus gestos. Tentou agarrar-se ao marido. Paralisá-lo
como uma camisa-de-força, anestesiá-lo com o olhar. Mas não conseguiu.
Faltou-lhe poder nos braços e nos olhos para conter a fúria que se
apossara dele. Com um empurrão foi atirada na cama que afundou com o
impacto da queda. O barulho fez acordar a criança que lançou seu choro
do outro quarto. A porta da sala bateu forte abafando os lamentos da
mulher dentro do recinto. O homem partiu.
Depois
de muito pensar, a vizinha resolveu verificar o ocorrido no apartamento
ao lado: aquela barulheira, a porta batendo e o choro que não parava.
Abaixou o volume da televisão e encostou o ouvido na parede. “O que está
acontecendo?” E foi à campainha desobedecendo ao conselho do marido:
– Deixa pra lá mulher. Isso é briga entre os dois, não se mete!
– Ouvi passos na escada, Marta deve está só, precisando de ajuda. Não ouve o choro?
Logo a porta abriu, revelando um rosto encharcado e corado pelo pranto da mulher.
– Que foi minha filha? Perguntou a vizinha amparando-a nos braços.
Os soluços não a deixaram responder, davam solavancos no peito interrompendo cada palavra.
– Calma filhinha, não diz nada, ta?... Olha o Marcinho chorando, tadinho!... Vou preparar um copo de água com açúcar pra vocês.
Alguns minutos tranqüilizaram Marta que, enxugando a face, explicava a cena repentina.
– Mas por quê mulher, assim tão de repente? Admirou-se a vizinha.
– Não sei Dona Célia. Será que meu marido enlouqueceu, meu Deus?! E tornou a chorar soluçando de novo.
– Calma filhinha, calma...
– Vou à casa de meus sogros! Decidiu Marta.
– É melhor você não ir hoje, já são quase dez horas...
– Eu tenho que ir, eles devem saber de alguma coisa. Não posso ficar aqui chorando com meu filho! Toma conta dele pra mim dona Célia, por favor!
E saiu atrás do marido.
Quando partira, Jorge havia saído em disparada no seu carro. Deixou tudo para trás, afundando o pé no acelerador, roncando os motores em busca de Margarida.
Fina flor Margarida, a jovem que o quarentão conquistara e vinha mantendo um caso amoroso durante os últimos oito meses. “Manobro a moça!” Pensava consigo e gabava-se a um amigo que acaso encontrasse num barzinho tomando chope. Dividiu-se então, entre a esposa e a jovem amante.
– Desse jeito não dá mais, já estou cansada de ser a outra! Disse Margarida certo dia.
Jorge se viu perdido então. Não quis trabalhar na manhã seguinte, foi apenas pedir demissão. Já havia decidido. Partiria com a jovem para São Paulo, afinal possuía ótima conta bancária e não teria dificuldade de se empregar naquela capital. Mulher, filho e o resto da família não importavam. Margarida era-lhe muito mais que isso. Ficaria tudo bem. Pagaria uma pensão de divórcio à esposa e ao garoto, constituiria nova família.Passou a noite num hotel e foi, na manhã seguinte, buscar sua amante.
Sol de verão, malas no carro e Margarida ao lado. Pôs o veículo para funcionar e saiu em meio ao “rush” matinal da avenida.
* * *
Onze e meia da noite anterior. Marta batia à porta dos sogros:
– É você Marta? Perguntou a sogra assustada a sogra assustada, mesmo vendo diante de si a nora – Você está chorando?... O que está havendo, meu Deus?
– Jorge partiu! Respondeu jogando-se nos braços da sogra.
* * *
Quando o céu clareou finalmente, foram buscar a criança deixada com a vizinha. Logo saíram mãe, avó e filho em busca de Jorge.
Na empresa souberam do pedido de dispensa e partiram sem saber aonde ir na calçada da avenida.
* * *
Jorge driblava os carros no trânsito da cidade. Sentia-se pouco paciente na ânsia da fuga. Parou descontente no sinal luminoso e acendeu um cigarro com gestos intranqüilos. Olhou Margarida ao lado e teve o ímpeto de beijá-la. Mas, a voz infantil, vinda da calçada, interrompeu seu movimento. Virou-se e viu entre os parentes, seu filho Marcinho, que puxando a mãe com uma das mãos e sacudindo a avó com a outra, arregalava os olhos e gritava:
– Olha o papai! Olha ele lá. Mãe!!... Paiê, a gente ta procurando o senhor!!!
– Deixa pra lá mulher. Isso é briga entre os dois, não se mete!
– Ouvi passos na escada, Marta deve está só, precisando de ajuda. Não ouve o choro?
Logo a porta abriu, revelando um rosto encharcado e corado pelo pranto da mulher.
– Que foi minha filha? Perguntou a vizinha amparando-a nos braços.
Os soluços não a deixaram responder, davam solavancos no peito interrompendo cada palavra.
– Calma filhinha, não diz nada, ta?... Olha o Marcinho chorando, tadinho!... Vou preparar um copo de água com açúcar pra vocês.
Alguns minutos tranqüilizaram Marta que, enxugando a face, explicava a cena repentina.
– Mas por quê mulher, assim tão de repente? Admirou-se a vizinha.
– Não sei Dona Célia. Será que meu marido enlouqueceu, meu Deus?! E tornou a chorar soluçando de novo.
– Calma filhinha, calma...
– Vou à casa de meus sogros! Decidiu Marta.
– É melhor você não ir hoje, já são quase dez horas...
– Eu tenho que ir, eles devem saber de alguma coisa. Não posso ficar aqui chorando com meu filho! Toma conta dele pra mim dona Célia, por favor!
E saiu atrás do marido.
* * *
Quando partira, Jorge havia saído em disparada no seu carro. Deixou tudo para trás, afundando o pé no acelerador, roncando os motores em busca de Margarida.
Fina flor Margarida, a jovem que o quarentão conquistara e vinha mantendo um caso amoroso durante os últimos oito meses. “Manobro a moça!” Pensava consigo e gabava-se a um amigo que acaso encontrasse num barzinho tomando chope. Dividiu-se então, entre a esposa e a jovem amante.
– Desse jeito não dá mais, já estou cansada de ser a outra! Disse Margarida certo dia.
Jorge se viu perdido então. Não quis trabalhar na manhã seguinte, foi apenas pedir demissão. Já havia decidido. Partiria com a jovem para São Paulo, afinal possuía ótima conta bancária e não teria dificuldade de se empregar naquela capital. Mulher, filho e o resto da família não importavam. Margarida era-lhe muito mais que isso. Ficaria tudo bem. Pagaria uma pensão de divórcio à esposa e ao garoto, constituiria nova família.Passou a noite num hotel e foi, na manhã seguinte, buscar sua amante.
Sol de verão, malas no carro e Margarida ao lado. Pôs o veículo para funcionar e saiu em meio ao “rush” matinal da avenida.
* * *
Onze e meia da noite anterior. Marta batia à porta dos sogros:
– É você Marta? Perguntou a sogra assustada a sogra assustada, mesmo vendo diante de si a nora – Você está chorando?... O que está havendo, meu Deus?
– Jorge partiu! Respondeu jogando-se nos braços da sogra.
* * *
Quando o céu clareou finalmente, foram buscar a criança deixada com a vizinha. Logo saíram mãe, avó e filho em busca de Jorge.
Na empresa souberam do pedido de dispensa e partiram sem saber aonde ir na calçada da avenida.
* * *
Jorge driblava os carros no trânsito da cidade. Sentia-se pouco paciente na ânsia da fuga. Parou descontente no sinal luminoso e acendeu um cigarro com gestos intranqüilos. Olhou Margarida ao lado e teve o ímpeto de beijá-la. Mas, a voz infantil, vinda da calçada, interrompeu seu movimento. Virou-se e viu entre os parentes, seu filho Marcinho, que puxando a mãe com uma das mãos e sacudindo a avó com a outra, arregalava os olhos e gritava:
– Olha o papai! Olha ele lá. Mãe!!... Paiê, a gente ta procurando o senhor!!!
O
sinal abriu e os carros buzinaram. O homem vendo que interrompia o
trânsito, acelerou a máquina (“Peraí, pai!”) e se perdeu em meio ao
fluxo dos automóveis, deixando na calçada aquelas três criaturas que
olhavam estarrecidas o veículo sumir na próxima esquina. ###
A Esquina 25 de Dezembro
Um homem seguia uma rua comprida e de trezentas a sessenta e cinco esquinas. Sentia-se cansado e, de certa forma, desanimado. Em cada esquina desta rua denominada “1982”, deparou com fatos tristes e rotineiramente trágicos, formadores de uma paisagem vandalizada. Por isso poucas vezes sorriu com algo prazenteiro que quebrantasse esta fatal rigidez.
De repente, já nas últimas esquinas desta rua, pressentiu flores eclodindo nos canteiros das calçadas e captou no ar suaves fragrâncias. Não resistindo se curvou para colher o primeiro botão, sugando para dentro de si o perfume. Sentiu então uma transformação no espírito apático, ficando estático por alguns instantes, mas logo prosseguiu.
Passaram esquinas e calçadas, multiplicando-se as flores, tornava-se cada vez mais belo o cenário. Gradativamente também, o cansaço e a dor se ausentaram da face e ele sorriu a uma criança que lhe cruzou à frente. Na próxima esquina outras crianças surgiram e eram cada vez mais a brincarem, com coloridos buquês às mãos. Aproximou-se o homem, e, deslumbrado, já não mais caminhava, corria pelo caminho florido e alegre. Transformara-se completamente a paisagem, ficara linda! Então ele refletiu: “Ué, será que sigo a mesma rua que vinha seguindo?” Correu até a próxima esquina para tirar dúvida olhando a plaqueta presa ao poste: “Rua 1982 (ESQUINA 25 DE DEZEMBRO)” “Então é isso!” deduziu – “com tanta escuridão pelo caminho, já nem me lembrava da existência desta esquina!”
Uma menina, puxando-lhe pelo braço, cortou-lhe o pensamento, chamando-o de volta à brincadeira. Totalmente contagiado, deixou-se levar pela garota que o conduziu ao centro da rua, onde seus coleguinhas formavam uma festiva roda girante e cantante. Dando as mãos aos meninos da roda, transformou-se também em criança, cantando e girando na brincadeira. Cantigas de roda se misturaram ao perfume das flores no ar. Pássaros que voavam sobre as árvores, viram no centro do círculo infantil, deitado sobre berço de palha, um bebê que espelhava toda a luz matinal, emitindo raios para alimentar o contentamento que lhe fazia órbita, em magnífico coro:
“Bate sino pequenino, sino de Belém!...” ###
Abraços!
Bira.
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