Colagem de imagens sobre um recorte da vista parcial de Timóteo, do alto do Pico de Ana Moura - Bira, 2013. |
Atiradores de Pérola - Parte I
Amigos!Parte I - A Destruição de Timóteo, do Vale do Aço e Talvez do Mundo.
Aline tinha certeza que pôs o celular para carregar ao lado da cama, antes de dormir. Agora, que a luz da manhã invadia as frestas da janela de seu quarto o aparelho simplesmente não estava mais ali. A jovem de 22 anos morava com seu viúvo pai, aposentado aos 64 anos, em uma pequena casa da Avenida Ana Moura, em Timóteo. Ele também acabara de acordar e, no quarto ao lado, coincidentemente procurava por algo: seus óculos. Revirou tudo, não obteve sucesso e se aproximou da porta fechada do quarto de Aline para perguntar:
– Filha, por acaso você viu meus óculos?
– Não vi não, pai... - respondeu a moça – e por acaso o senhor pegou meu celular?...
Embora contrariados riram da situação, cada um de um lado da porta. Então, Aline ficaria sem encher o saco do noivo com suas ligações frequentes e Horácio, seu pai, não conseguiria ler um jornal sanguinário que chegava de Belo Horizonte.
Quando não tinha mais onde procurar o aparelho, Aline arrumou-se e foi para o Centro Comercial comprar um novo. Próximo dali, na Praça 1º de Maio, seu pai encontrou amigos que estranhamente também haviam perdido objetos. A coincidência foi grande: Nicolau, João e Galeno também perderam seus óculos e o solitário Alaor - um solteirão de 58 anos - relatava assustado o sumiço de todas as suas cuecas. Diante da desconfiança dos amigos, Alaor afirmava:
– É sério, meus amigos!... Sumiu até a cueca que eu havia vestido!...
E ameaçou abaixar as calças para comprovar a fala. Recebeu um sonoro "Nããããoo!" em coro.
– Eu sei que você está nervoso, mas não precisa mostrar esse trem... A gente acredita sem ver! - Disse Horácio com uma ponta de humor, apesar do espanto.
A poucos metros da praça, Aline não conseguiria comprar o celular, pois a loja ainda estava fechada. Estranhou o fato e logo percebeu que curiosos observavam através da vitrine o movimento no interior da TimoCel. Juntou-se a eles para ver dois policiais examinando as prateleiras e mostruários vazios, enquanto um terceiro colhia o depoimento do gerente da loja. Um vigia noturno do Centro Comercial repetia pálido:
– Ninguém entrou na loja de madrugada!... Eu teria visto!
De fato, não havia sinais de arrombamento, mas todos os celulares desapareceram da vitrine ou do estoque. A notícia só não se espalhou mais rápido, porque naquela manhã todos os moradores da cidade situada no Vale do Rio Doce procuravam por algo perdido e nem se davam conta de que este sim era o grande fato: Objetos e coisas haviam sumido em Timóteo.
Não demorou muito tempo para o primeiro e grande susto: Todos os automóveis estacionados na Rua Miguel Maura desapareceram, do nada, em plena luz do dia. O pânico apossou-se das pessoas naquele local. Algumas corriam e gritavam sem direção ou sapatos, que também acabaram de sumir. Outros, que ficaram sem camisas ou vestidos apenas com peças íntimas, trancaram-se nas lojas ou salas, de onde já não havia mais mobília. Todos tentavam se proteger de alguma forma, sem saber ou entender o que ocorria.
Um cão assustado latiu atrás das grades de um portão. Seu latido incessante, no entanto, deixou de emitir som. O animal esforçou-se para latir mais alto e foi em vão. Até que o próprio cão sumiu, pouco antes do portão que o aprisionava.
Uma rajada de vento, em instantes, arrastou para o nada todas as árvores dos canteiros centrais da Alameda 31 de Outubro. Com elas sumiram automóveis, motos e bicicletas, estacionados ou em movimento. Gente que ali transitava se desfez sem sequer ter percebido o que ocorria. As lojas, os prédios, o ginásio poliesportivo e a Fundação Arcelor foram apagados. Pelo caminho ficaram apenas escombros do hipermercado. José, que vendia panelas e tachos de alumínio em frente ao mercado encolheu-se de medo, perdeu os sentidos e caiu, para desaparecer junto ao concreto e asfalto que escondiam o chão de terra, agora revelado.
Na Paróquia de São José, no entanto, a missa prosseguia normalmente. Concentrados no ritual, os fiéis não perceberam o que ocorria do lado de fora. Mas a paz não durou muito tempo: quando o padre, no altar, ergueu um cálice de vinho, o crucifixo simplesmente sumiu da parede atrás do pároco. Surpreendido pelos olhares arregalados da plateia e pelo coro de bocas que se abriam em espanto, o sacerdote virou-se para traz e testemunhou momentos terrivelmente mágicos: Não foi apenas o Cristo crucificado que sobre o altar sumia. O belo painel de São José se decompôs e, no instante seguinte, a parede detrás do altar. Desfizeram-se o teto e toda a igreja com seus fiéis. Lojas e prédios do entorno também desapareceram e foi surgindo um imenso descampado em direção aos montes que margeiam a cidade. Incólume no altar, o padre testemunhou em segundos, um deserto de barro ocupando lugar das construções. Ele nem teve tempo de sentir medo e também sumiu - antes mesmo de se benzer.
Na Praça de Jogos, em frente à paróquia, restou apenas um conjunto de mesa e quatro bancos para onde Alaor - o solteirão sem cuecas - foi jogar cartas com velhos amigos, até que tudo sumisse perante seus olhos. Num gesto de desespero, Alaor agarrou-se à mesa de concreto, enquanto teve a impressão de que um imenso furacão sugava sua cidade para um buraco aberto no céu. O homem apavorado fechou os olhos para não ver nada e assim permaneceu, debruçado feito carta sobre a mesa em que jogava. Sobreviveu a tudo, mas não tinha coragem de olhar o que sobrou.
Minutos antes, a oito quilômetros do Centro, dois homens faziam manutenção rotineira nas antenas de telefonia do Pico da Ana Moura. Daquele monte de pedra a 800 metros de altura era possível avistar Timóteo e grande parte do Vale do Aço com seus montes verdejantes. Concentrados no trabalho, eles demoraram um pouco a perceber as mudanças no céu. Primeiramente, todas as nuvens desapareceram. Por trás das longínquas montanhas foi surgindo um tom de céu alaranjado feito a faixa de luz que anuncia o nascer do sol. Assustaram-se ao perceber que os montes também mudavam de cor. Em princípio, a grande distância não lhes permitiu definir o que ocorria. Mas do alto pareciam ver uma onda de plasma que vinha em sua direção, avançando rapidamente feito sombra sobre o vale. Logo, foi possível perceber a onda diluindo as construções de Timóteo e o verde dos seus montes. Paralisados, deram-se conta que em poucos segundos o Pico do Ana Moura também seria atingido. Desesperados começaram a rezar... A reza não pode ser concluída.
Em poucos minutos, onde havia casas, prédios, indústrias, igrejas, ginásios, restou apenas terra e barro seco. Os morros de Timóteo pareciam dunas vermelhas. Hectares de flora abundante foram substituídos por nuvens de poeira que desprendiam do solo. Seria impossível sobreviver ali por muito tempo, a não ser retirando alimentos e água dos poucos escombros que restaram. A esperança, no entanto, foi residir em uma área do tamanho de uma praça, cerca de 500 m2, em Cachoeira do Vale, a quatro quilômetros do Centro Comercial. Ali passava o Rio Piracicaba que secou, mas deu vez a uma pequena lagoa envolta de vegetação. Naturalmente, os sobreviventes da hecatombe subiriam o morro da pedreira para avistar do Rio Piracicaba. Eles se assustariam ao encontrá-lo seco, mas descobririam o oásis que ali restou. E foi assim que ocorreu.
Uma semana depois, a população do oásis era composta por 14 pessoas, oito cavalos e três cachorros. Os animais foram levados por Altair, único sobrevivente do Clube do Cavalo de Timóteo. O homem cavalgou cerca de 15 quilômetros pela cidade destruída, encontrando apenas os três vira-latas que fuçavam alguns escombros. Seguiu até achar o oásis onde ficou e anunciou aos habitantes:
– A impressão que eu tive é de que não restou nada no mundo além dessa lagoa. Pelo menos, por dezenas de quilômetros daqui, não deve haver mais nada além dos morros de barro e esse céu laranja e sem nuvens.
A próspera cidade de 81 mil habitantes foi reduzida às seguintes pessoas no entorno da lagoa: O cavaleiro Altair e o enfermeiro Antônio, ambos com 35 anos e que se apresentavam mais lúcidos; Alaor, o solteirão sem cuecas, que no auge do desastre não teve coragem de abrir os olhos e agora não conseguia fechá-los para dormir; Chico, um velho bebum cuja catástrofe, enfim, justificava sua embriaguez, abastecida pelas garrafas que encontrava; nove dos jogadores de futebol que estavam treinando no Acesita Esporte Clube e agora, deprimidos, nem tinham forças para ficarem de pé; por último, Aline - a única mulher do grupo. A filha do viúvo Horácio que antes não vivia sem o celular e agora teria de viver sem o mundo. Foi sobre o mundo, Aline pensou:
– Deve estar tudo acabado... A essa altura, Belo Horizonte também já foi destruída - desesperou-se ao lembrar do noivo – Roberto não deve ter sobrevivido na capital!...
Seu casamento estava marcado para o mês que vem, no mesmo dia em que ela faria 23 anos. De repente ficou sem noivo, pai, familiares, amigos, igreja, cidade e esperança. Por fim, já nem tinha lágrimas nos olhos que secaram feito o Rio Piracicaba e vagavam perdidos no vale do nada.
Mais dispostos, Altair e Antônio se incumbiram de encontrar alimentos e roupas no que restou da cidade. Para isso, utilizavam os cavalos e até o faro dos cães. No nono dia pós-tragédia, quando iam sair em busca de alimentos perceberam sete homens se aproximando do oásis, com passadas curtas e ombros caídos pelo cansaço. Apressaram-se em socorrê-los. Quando Altair se aproximou, de cara, reconheceu César, o professor de MMA e lhe servindo água falou:
– César, eu sou Altair lá do Clube do Cavalo, perto da sua academia... Antes de chegar aqui, procurei sobreviventes lá no Centro Sul e não encontrei ninguém, nem mesmo vocês.
O professor e seus alunos não tinham condições de falar até que recobrassem as forças perdidas descansando no oásis, que amanheceu com 21 habitantes.
Na manhã seguinte, Roberto que alertou a todos que o nível da lagoa estaria baixando. Foi César, o recém chegado, que mais se assustou com o fato e perguntou:
– E se a lagoa secar? Como vai ser?...
– Bem, eu e Altair já conversamos sobre isso e não pretendemos ficar aqui esperando que isso ocorra. Daqui a pouco vamos sair a galope, em direção à Ipatinga e ver o que encontramos... Nossa esperança é retornar aqui para resgatar a todos.
– Mas Roberto, ta dando para perceber que não restou nada no mundo. Olha esse céu alaranjado sem urubu ou avião! - Contrapôs-se Alaôr.
– Ficar aqui vendo esse lugar secar e os mantimentos acabarem é morrer aos poucos. Vamos tentar alguma coisa. - Completou Altair.
A seguir escolheram os dois melhores cavalos e se despediram dizendo "Voltaremos!". Nem eles próprios acreditavam nisso, mas mesmo assim sumiram mergulhando atrás do próximo morro.
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